segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A Vizinha








Novembro 2021
A Vizinha (A Velhinha dos Gatos)

Gosto de observar as pessoas.
Aprendo muito — e também me divirto à larga.

Todos os dias, pela manhã (e à noitinha), eu a vejo com uma sacolinha de papel de algum restaurante.
Ela veste invariavelmente uma túnica indiana em tons de lilás e roxo, com dourado (por cima da camisola ou do pijama!).
Cabelinho curto, escovado em “chanelzinho”. Usa uma tiara, quase sempre preta.
Noto que passou creme no rosto e um pouco de bronze nas faces.

É uma senhora já de idade — posso dar a ela uns 70 e lá vai pedrada...

Às vezes, a cena é insólita:
ao abrir a porta do prédio, alguns gatos já a esperam.

São quase sempre os mesmos — às vezes, com algum convidado de última hora.

Tem um cinza e branco, que tem uma das patinhas da frente fraturada há tempos. Ele manca, anda aos pulinhos e corre de um jeito engraçado.
Ela o chama de "Creepy".

Outro, parte do trio (por vezes quarteto), é um amarelo e branco, cego de um olho, ao qual ela chama de "Lampião".
(Eu, pessoalmente, daria a ele um nome de gangster russo... bem a calhar nessas paragens.)
Mas quem faz a festa é ela — então pode chamá-los como quiser, não é?

Lampião tem uma peculiaridade:
ele fala.
Constrói frases em “gatez”.

Dá pra perceber quando está bravo com ela pela demora, quando a saúda carinhosamente, ou quando sente ciúmes dos afagos distribuídos aos outros.
Ele FALA.

Há um terceiro, que é uma gata grande, peluda e dengosa, toda cinza.
Ela a chama de "Grey".

Os visitantes variam.
Às vezes, um preto e branco, gorducho, de cara redonda.
Outras, um magrelinho malhado de ferrugem, branco e preto.

Na entrada do prédio há um cantinho coberto onde ela colocou um pote de plástico vazio de sorvete.
Ali, eles têm água fresca todos os dias — ela troca com cuidado.

E então vem a hora da “boia”:
ela tira da sacolinha um saquinho com ração seca.
Faz montinhos para cada um — e mais um para a visita.

Tudo isso é um ritual.

Às vezes, os gatos estão brincando pelos jardins...
Ela aproveita para trocar a água e deixar os montinhos preparados.

Quando eles estão esperando, tem sempre algum tumulto — um achando que o montinho do outro é maior.
Aí ela começa a miar:
"Mish-mish-mish!"
E segundos depois, a turminha do “free-stuff” chega — cada um de um canto, miando muito.

Às vezes, eles nem estão com fome.
Mas fazem a festa.
Cada um tem sua participação nesse ritual maluco.

Um dia, sentei no murinho e puxei conversa com a “velhinha dos gatos”.
Perguntei se os gatos eram dela — só pra ver a resposta e engatar conversa.

Ela respondeu:
"Sim. Todos os gatos são meus e de todo mundo. Quem ama, cuida."

Explicou que em Israel os gatos de rua são cuidados:
cada prefeitura tem um serviço que recolhe, castra e devolve o gato ao local de origem.
O sinal de que já foi castrado é uma pequena marca na ponta da orelha.

Contou também que aqui todo cãozinho que nasce tem que ter um dono.
É registrado e recebe um chip de identificação caso fuja ou se perca.
Você não vê cães de rua em Israel.

E muitas pessoas têm cães e gatos em casa — o que é uma maravilha.

Ela não parou mais de falar (nem precisei dar corda!).
Contou que veio de longe, muito longe.
Tinha um amiguinho schnauzer que foi seu companheiro por 12 anos.
Ele era o Sancho Pança, e ela o Dom Quixote.

Vivenciaram muitas situações engraçadas.
Ele era ciumento, rabugento, autoritário e imensamente fiel à sua humana.
Disse que uma vez até impediu que ela fosse assaltada na rua Maria Antônia, em São Paulo.

Depois, mudaram de país.
Ele viveu feliz, com um bosque só pra ele, muitos acres gramados e esquilos para perseguir.

Um dia, adoeceu.
E quando começou a sofrer, ela lhe deu o maior presente:
não permitiu que sofresse.
Levou-o até a Ponte do Arco-Íris, embalando-o nos braços.
Deixou-o partir.

Ela acredita que ele está esperando por ela, lá do outro lado.

Enterrou seu corpinho à sombra da árvore que ele mais gostava, no bosque.
Embrulhou-o numa blusa dela e marcou o lugar com pedrinhas brancas — da cor da areia de Cabo Frio.

Depois chegou aqui, em Israel.
Na Terra do leite e do mel.
Dos gatos mimados.
Dos cães felizes e protegidos.

Um dia, ao abrir a porta de casa, encontrou um gatinho pequeno — quase saindo da infância.
Miado vai, miado vem...
Nasceu um grande amor.

Era uma gatinha malhada, dengosa e pidoncha.
Doce e carinhosa.

Tentou ficar com ela em casa.
Mas a senhora sofre de alergia brutal a gatos — espirra, tosse, olhos incham e lacrimejam.
Então não pôde ficar.

Uma vizinha cuida da gatinha.
E como ela se mudou de casa, vai sempre visitá-la.

Há, ainda, outro porém:
o marido é muito ciumento.
Não gosta de dividir os mimos com cães ou gatos...

Ela me explicou que o jeito que encontrou de “ter-quase-tudo” foi esse ritual de encontros matinais e ao anoitecer, com os bichanos —
que participam alegremente.

Uma velhinha — desculpem! — uma senhora engraçada, com muita história pra contar.

Se você sentar e der trela,
ela nem vírgula usa.
Não para nem pra respirar!

Esther Crouch & Lev

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Final ou Recomeco




Final… ou Recomeço?
Esther Crouch

Quando eu me retirar para dentro dos meus olhos,
quando eu me for —
diluir na névoa das manhãs…

Me deixa ficar lá.

Não tente intervir.
Não tente me tirar de onde estou.
Não me chame.

Talvez eu vá ao encontro do silêncio.

Quem sabe, por fim,
eu possa encontrar o ponto
em que as linhas paralelas se juntam


e a Paz nos abrace no final.

Uma bênção.

E.C.