sábado, 24 de junho de 2023

Memorias na Madrugada


🌙 Ontem à Noite

Por Esther Crouch

Ontem à noite estava quente, bastante quente — mas (ainda bem!) não o suficiente para ligar o ar-condicionado.
Moshe foi se deitar na horinha certa dele e eu, a notívaga incurável, me vi encantada com a calma da noite.
Sendo Shabat, havia um silêncio abençoado no ar. O céu, claro, com estrelas brilhando, e o perfume dos jasmins entrando pela janela da minha salinha de estar — onde passo horas em conluio comigo mesma, todos os dias, e avanço muitas noites.

Meus olhos se perdem nas montanhas, onde as luzes do kfar cintilam como diamantes de vários tamanhos.
Nessa quietude — uma solidão bem-vinda — meus pensamentos voam.
Viajo longe no tempo. Faço visitas à menina que fui, ando pela casa onde nasci, balanço-me novamente no velho balanço que meu pai fez para mim no quintal. Acaricio mentalmente meus primeiros bichinhos, que me ensinaram o amor e povoaram de ternura minha infância.

E assim voei, ontem à noite... longe.

Entre tantas lembranças, sentimentos se mesclavam — saudade, ternura, alegria, tristeza — memórias com sabor doce das surpresas vividas um dia.
Engraçado como os bons momentos ressurgem: risadas sem propósito, letras de músicas que me encantaram na infância e juventude...
Como por magia, tudo vai desfilando, se sobrepondo.

Até mesmo o cheiro do meu primeiro batom (um tom rosa-alaranjado) reapareceu...
E o perfume Cabochard, da Grès — aquele com a fitinha de veludo cinza, amarrada em lacinho.

Ah, sim! Meus heróis também rondaram minha noite, e pude cumprimentá-los mais uma vez.

Sentei-me outra vez com Vinicius de Moraes naquela mesa de um restaurante português (cujo nome me escapou...) perto da Avenida da Consolação, lá embaixo, quase no centro de São Paulo.
Lembro do gosto do vinho verde, da voz rouca do Poetinha, do tilintar do gelinho no seu whisky.
Ele ia falando e rindo, sempre mexendo o copo.

Inesquecível também foi quando troquei duas palavras com o grande Guilherme de Almeida, em seu pequeno escritório no centro da cidade — ele morreria, acho, um ano ou dois depois.

Visitei o Aldemir Martins, com aquele jeitão só dele — simples, calmo — e com direito a uma taça de champagne no ateliê do grande pintor!
Vieram também à lembrança figuras impressionantes como Caciporé Torres e Lizetta Levi, minha amada professora de História da Arte.

Roberto Campos, com sua inteligência aliada ao bom humor — coisa rara!
Mente rápida, certeira, um gênio de verdade. Conheci-o, com surpresa e prazer, num coquetel a bordo de um iate em Angra dos Reis.

E Aznavour! Tive o privilégio de vê-lo cantar minhas músicas prediletas num bar mitzvah em São Paulo. “Désormais”... lindo demais!

E o Dener Pamplona, com sua belíssima Maria Stella Splendore. Depois de muita música no Tom-Tom, fim de noite no Cave...

Ah... que gente incrível passou pela minha vida!

Estava em Nova York quando o grande Rav Meir Kahane Z"L foi assassinado, logo após dar uma palestra para os ortodoxos.
Esse sempre foi — e é — um dos meus grandes heróis.

Tive também o privilégio de receber das mãos do Rebe de Lubavitch Z"L o famoso dólar.

Meus heróis já morreram.
Hoje, não reconheço heróis na mediocridade que nos assola.
Triste geração, essa, sem verdadeiros heróis...

Mas... os livros!
Ah, os livros que ficaram — eles pululam na minha memória.
Consigo vivê-los em pensamento: viajo por séculos, enfrento tempestades, percorro mundos, brinco de faz-de-conta na era medieval.
Sou romântica em Montmartre, voo até a Praga de Kafka, sofro com Oscar Wilde em De Profundis...
Tenho ainda hoje muitas companhias interessantes.

Que sortuda eu sou! Que privilegiada fui ao nascer.
Não apenas passei pela vida — VIVI a vida.
E vivo.
Tenho muito a agradecer.

Sou rica por ter pertencido a uma geração que teve heróis de verdade.
Por ter consolidado valores profundos.
E por ter a bênção de ver meus filhos e netos crescerem preservando esses mesmos valores.

Da minha janela em Karmi’el, no norte de Israel, com vista para as montanhas da Galileia...

— Esther Crouch