Da Minha Janela em Karmi'el
Ontem à noite estava quente, bastante quente — mas (ainda bem!) não o bastante para ligar o ar-condicionado.
Moshe foi se deitar na horinha certa dele, e eu, a notívaga, me vi encantada com a calma da noite.
Sendo Shabat, tudo estava silencioso. O céu, claro; as estrelas, brilhando. E o perfume dos jasmins entrando pela janela da minha salinha de estar — esse cantinho onde passo horas em conluio comigo mesma todos os dias e avanço muitas noites.
Meus olhos se perdem nas montanhas, onde as luzes do kfar cintilam como diamantes de vários tamanhos.
Nessa quietude — solidão bem-vinda — meus pensamentos voam. Viajo longe no tempo. Faço visitas à menina que fui. Ando pela casa onde nasci. Sento mais uma vez no balanço que meu pai fez para mim no quintal.
Acaricio meus primeiros bichinhos, que me ensinaram o amor e povoaram de ternura minha infância.
E assim, voei ontem à noite... longe.
Entre tantas lembranças, sentimentos mesclados de saudade, ternura, alegria, tristeza — memórias de sabor doce, das surpresas vividas um dia.
Engraçado como os bons momentos, as risadas sem propósito, as letras de músicas que me encantaram na infância e juventude... como por magia, desfilam, vão se sobrepondo.
Até mesmo o cheiro do meu primeiro batom (era de um rosa-alaranjado...), o primeiro perfume: Grès Cabochard — aquele da fitinha cinza de veludo amarrada em lacinho.
Ah, sim! Meus heróis também fizeram a ronda ontem à noite, e pudemos nos cumprimentar outra vez.
Sentei mais uma vez com Vinicius de Moraes naquela mesa do restaurante português (cujo nome ainda me escapa...) perto da Avenida da Consolação, lá embaixo, quase no centro de São Paulo.
Lembro do gosto do vinho verde, da voz rouca do Poetinha e do tilintar do gelinho no uísque dele.
Ele ia falando e rindo, sempre mexendo o copo.
Inesquecível também o momento em que pude ter dois dedos de conversa com o grande Guilherme de Almeida em seu pequeno escritório no centro da cidade. Morreria, acho eu, um ano ou dois depois.
O Aldemir Martins que visitei, com aquele jeitão só dele — simples e calmo — com direito a uma taça de champagne no ateliê do grande pintor.
Figuras impressionantes como Caciporé Torres.
Lisetta Levi, minha amada professora de História da Arte.
Roberto Campos — uma inteligência aliada ao bom humor, coisa incomparável! Mente rápida e certeira, gênio mesmo.
Tive o prazer — e a surpresa — de conhecê-lo num coquetel a bordo de um iate em Angra dos Reis.
Aznavour, que tive a chance de assistir cantar minhas músicas prediletas num bar mitzvah em São Paulo. “Désormais”... lindo demais!
Dener Pamplona e sua belíssima Maria Stella Splendore — depois de muita música no Ton-Ton, fim de noite no Cave.
E por aí vai... gente incrível na minha vida.
Estava em Nova York quando o grande Rav Meir Kahane ז״ל foi assassinado após uma palestra para os ortodoxos. Esse foi — e é — um dos meus grandes heróis.
Tive o privilégio de receber das mãos do Rebe de Lubavitch ז״ל o famoso dólar.
Meus heróis estão mortos.
Hoje, não reconheço heróis dentro da mediocridade que nos assola no mundo...
Triste geração sem heróis. Verdadeiros heróis.
Mas os livros!
Ah, os livros que ficaram e pululam na minha memória!
Consigo vivê-los em pensamento. De maneira extraordinária, viajo séculos, enfrento tempestades, percorro mundos, brinco de faz-de-conta na era medieval.
Sou romântica em Montmartre.
Viajo até a Praga de Kafka.
Sofro com Oscar Wilde no De Profundis.
Tenho muitas companhias interessantes ainda hoje.
Que sortuda eu sou. Que privilegiada nasci.
Não passei pela vida.
Vivi e vivo a vida — e tenho muito a agradecer.
Sou rica por pertencer a uma geração que teve heróis de verdade, por ter consolidado valores importantes, e por ter a bênção de poder ver meus filhos e netos crescerem preservando os mesmos valores.
Da minha janela em Karmi’el, no Norte de Israel, com vista para as montanhas da Galileia.
Esther Crouch