Linhas Paralelas
Um conto de amor, reverência e esperança
Introdução:
Nem toda história de amor termina com um “felizes para sempre”. Algumas atravessam décadas, continentes, religiões, famílias e ainda assim permanecem vivas — mesmo que invisíveis. Esta é a história de uma mulher que viveu intensamente, amou profundamente, sofreu com dignidade e encontrou, no fim, uma paz perfumada entre jasmins e gatos. Uma história real, contada com delicadeza, sem nomes, mas cheia de identidade.
Texto:
Ela nasceu em São Paulo, entre flores e festas, mimada pelo pai como uma princesa de contos antigos. Os olhos grandes, castanhos e curiosos pareciam sempre à procura de algo além. Os cabelos longos escorriam pelas costas como seda viva. E o perfume… ah, o perfume. Zadig, de Emilio Pucci — um aroma raro, elegante, que a envolvia como uma assinatura invisível.
Seu pai a tratava como uma joia. Mimada, sim — mas com afeto, com orgulho, com ternura, a fazia sentir que o mundo era seguro, belo, possível. O melhor colo, lugar seguro no mundo. E ela acreditava. Até o dia em que o encontrou sem vida. Um acidente. Um silêncio. E a menina que falava com os olhos, calou-se por meses.
A arte a salvou. A FAAP a recebeu como quem entende almas feridas. Entre pincéis e telas, ela começou a se reconstruir. Mas algo ainda faltava. A fé herdada já não bastava. A dor abriu espaço para perguntas. E as respostas começaram a surgir com os amigos judeus, nas festas judaicas, nas aulas que a faziam levitar, nos olhares que a acolhiam. Foi se aproximando da comunidade judaica como quem encontra uma terra prometida dentro de si.
E então, como nas grandes histórias, veio o amor.
Um homem sete anos mais velho, de uma família tradicional, a amava com devoção. Ela, com entrega. Foram nove anos de amor profundo, mas também de resistência. A família dele não aceitava. Ela não era nascida judia. E um edito ancestral proibia bênçãos fora do padrão.
Ela foi para Israel. Trabalhou num kibbutz. Sobreviveu a um atentado no Golan. E ele, lá do Brasil, pediu sua mão. Ela voltou. Vestido pronto. Convites enviados. Apartamento arrumado. Mas a família o sequestrou. Ele desapareceu na Suíça. Ela, numa clínica de repouso, buscando nos sonhos o que a realidade lhe negava.
Quando ele voltou, voltaram a se ver. Mas agora era escondido. E então, trouxeram da Europa uma pessoa. Ele se casou com outra — uma moça da mesma origem, aparentada com a mãe. “É melhor assim”, ele disse. “Você ainda pode se casar bem. Se eu não me casar, você não se casará nunca.”
Ela foi para Minnesota. Converteu-se com o Chabad. Ao voltar ao Brasil, seu rabino fez um shidur e ela casou-se com um estranho, visto apenas três vezes. Teve dois filhos — sua vida. Criou-os com fé, com firmeza, com amor. Quando cresceram, divorciaram-se. Porque liberdade, para ela, sempre foi mais que sonho — foi escolha.
Aos 50, encontrou um companheiro. Americano, com seis filhos e duas ex-esposas já falecidas. Casaram-se nos Estados Unidos. Não foi fácil, mas foi verdadeiro. Em 2014, fizeram Aliyah. Hoje vivem em Karmiel, felizes.
E o mais curioso: seus filhos estudaram com os filhos do grande amor. Frequentaram os mesmos restaurantes, as mesmas festas. Linhas paralelas — tão próximas, tão distantes. Nunca se cruzaram. Nunca se esqueceram.
As pessoas os chamavam de “A Bela e a Fera”. Ela ri disso até hoje. Porque no fundo, sabe que foi bela. E que ele era mesmo fera, de uma inteligência impar e a amou como ninguém no mundo.
Hoje, ela vive uma vida simples. E isso, para quem já dançou entre festas e perfumes raros, é um luxo silencioso. Mora num bairro encantador no norte de Israel, onde as manhãs começam com o canto das aves e o perfume dos jasmins que rodeiam as grades do prédio. À frente da janela, uma tamareira a cumprimenta todos os dias, como uma velha amiga que conhece seus segredos.
Às seis da manhã e às seis da tarde, ela sai — sem maquiagem, de sandálias, com o coração leve — para alimentar os gatos da esquina. Eles a esperam como quem reconhece nela uma alma irmã. E ela os cuida como quem entende que o amor não precisa de palavras.
Acorda olhando para as montanhas da Galileia. E ali, entre o verde e o silêncio, ela encontra o que sempre buscou: paz. Não a paz da ausência de dor, mas a paz da aceitação. A paz de quem viveu tudo o que podia — e agora repousa entre perfumes, lembranças e miados.
Ela é avó, mãe, amiga, artista, sobrevivente. E acima de tudo, é ela mesma. Aquela que amou, que lutou, que se reinventou. E que hoje, entre gatos e jasmins, continua sendo poesia.
Encerramento:
Se você leu até aqui, talvez tenha sentido que esta história também fala um pouco de você. Porque todos temos nossas linhas paralelas — amores que não se cruzaram, escolhas que nos transformaram, silêncios que nos ensinaram. E se há algo que este conto deixa como legado, é que viver com verdade é o maior ato de esperança.
De uma maneira ou de outra fica a sensação de que as palavras sempre limitam a grandiosidade de uma emoção...
E.C.